Crianças Agredidas: os muitos tons da desconsideração

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No mundo dos adultos, grandes crises financeiras geram uma generalizada sensação de medo e insegurança em relação ao futuro. Desemprego crescente, desconfiança nas instituições, boatos e incertezas podem ter papel direto no desencadeamento, agravamento ou descompensação de quadros depressivos e ansiosos. Expectativas ou vivências de empobrecimento, fracassos e perdas evocam dois dos piores desconfortos mentais do ser humano: a vulnerabilidade frente aos eventos futuros e o desamparo. Com quem contar? A quem recorrer? O pensamento assume um viés catastrofizante e a capacidade de reação e enfrentamento dos mais banais problemas do dia a dia parece desaparecer. Tudo fica definitivamente muito assustador.

Pensar neste cenário, infelizmente mais nosso conhecido do que gostaríamos, nos permite vislumbrar uma pequena parte do que se passa com uma criança quando as pessoas supostamente encarregadas dos seus cuidados invertem a mão de suas atribuições e tornam-se seus piores algozes.

Cuidar dos mais frágeis do grupo social parece ter sido uma vantagem evolutiva dos nossos ancestrais. Talvez por isso a violência contra crianças provoque reações de repúdio e retaliação até entre os mais perigosos facínoras do sistema prisional.

Embora longe do ideal, evoluímos anos-luz em termos de leis e organismos de proteção e defesa dos direitos do menor. A sociedade parece estar mais atenta e tem como e a quem denunciar. Os casos de violência e abuso não estão mais frequentes, estão mais públicos. Estão, em verdade, diminuindo significativamente ao contrário do que possa parecer.

Essas boas notícias, no entanto, referem-se ao universo dos eventos mais graves e acintosamente lesivos. Pouco se fala ou publica sobre os aparentemente pequenos mas frequentes episódios de agressões, negligencias, descuidos e violações aos quais muitas crianças são submetidas.

Cuidar dá trabalho. Quanto mais frágil e despreparado for o objeto do cuidado maior esse trabalho será. A equação torna-se mais complexa quando consideramos que a qualidade e a constância do cuidado terá influencia no resultado do longo prazo. Vivemos tempos presentificados, narcísicos e hedonistas. O Princípio do Prazer parece ter ganho a guerra. Somos as pessoas mais importantes que já existiram sobre a face da Terra. Nossas existências fascinantes e nossas brilhantes opiniões sobre absolutamente tudo alimentam a time-line das redes sociais a cada segundo. Precisamos ter prazer sempre e pra sempre. E pra sempre é sempre agora. Meu prazer passa a ter sentido quando é visto, admirado e, por que não, invejado por todos. Em um mundo voltado para o imediato, pensar o amanhã em termos de consequências inter-temporais fica particularmente complicado.

Cuidar pressupõe um mínimo de abdicação. A atenção às necessidades do outro implica idealmente em abrir mão de alguns hábitos prazerosos e confortáveis do tempo em que só tinha que me preocupar com as minhas necessidades. Mas , como sou o ápice da Criação , como o mundo aperfeiçoou-se desde o big-bang para me admirar e satisfazer , recorro nessas situações de demanda externa ao meu instrumento favorito sempre que a realidade insiste em não reconhecer minha importância : a customização . Encaixo tudo e todos na minha privilegiada visão das prioridades da vida: todos têm prazer com aquilo que me dá prazer. Se quero ler ou estudar, meus filhos de 3 e 5 anos entenderão que o papel deles é brincar em silêncio para não me atrapalhar. Se quero pular carnaval ou encontrar meus amigos, que mal há em levar meu recém-nascido comigo para o bloco, o estádio de futebol ou a praça de alimentação de um shopping barulhento?

Cuidar pressupõe disponibilidade e prontidão às emergências alheias, principalmente daqueles que não tem como resolver ou mesmo entender a gravidade dessas emergências. Mas, convenhamos, não há nenhuma febre, tosse, falta de ar ou diarreia que não possa esperar até eu acordar amanhã ou tomar meu drink depois do trabalho. Meu sono e minha happy-hour são sagrados. Opor-se ao sagrado é heresia.

Quando decidimos ter filhos precisamos ter claro para nós mesmos o quanto estamos dispostos ao inesperado e à frustração das nossas fantasias de comercial de margarina. O quanto precisamos ser tolerantes com as diferenças e as imperfeições. O quanto aquele que eu gerei pode ser ou se tornar absolutamente diferente dos meus ideais de perfeição e sucesso. Em nome de “preparar os filhos para o mercado futuro”, muitos pais têm um nível de exigência em relação à performance da sua prole que leva as crianças à exaustão com os cursos mais variados ocupando todo tempo extra-classe. Isso para não mencionar a desqualificação de qualquer produção dessa prole que não seja “perfeita”.

Os profissionais que lidam com crianças podem ser de importância extraordinária se dedicarem algum tempo para esclarecer os pais sobre as características normais de cada faixa de idade. Não basta dizer “isso não é nada” ou “isso é normal”, mas sim esclarecer do que a criança é capaz ou não na sua faixa de idade. Ser mais específicos, por exemplo, ao abordar a relevância do limite e da formação da auto-estima de forma preventiva, não quando problemas nessas áreas aparecerem.
Muitas vezes temos um certo pudor de parecer invasivos ao abordar certos assuntos. Devemos ter em mente, porém, que o papel esclarecedor dos familiares mais velhos sobre questões do dia a dia é cada vez menos exercido. Temos toda preocupação em explicar o patológico e o disfuncional mas falamos pouco do valor do elogio, da escuta e da presença. Ensinar a prestar atenção no que realmente importa para o equilíbrio e o desenvolvimento da criança é uma tarefa que precisamos assumir. Isso pode fazer toda diferença.

Ricardo Krause
Psiquiatra da Infância e Adolescência