A Interface entre a Saúde e a Educação: Paradigma Necessário

1308

Por Clay Brites (Presidente ABENEPI-PR)

O desenvolvimento contemporâneo das ciências  relacionadas aos problemas no convívio familiar e  na aprendizagem escolar tem assumido uma proporção cada vez maior e mais complexo.  Vários eixos de conhecimento e novas descobertas nas áreas de comportamento e aprendizagem tem exigido a absorção de cada vez maior de informações que podem ser aplicadas em várias áreas ao mesmo tempo.  Todos nós, sejam agentes de Saúde ou de Educação, estamos cada vez mais  nos dirigindo para  a abordagem multidisciplinar.  Mas, o que é a multidisciplinaridade?

Quando atendemos uma criança ou um adolescente encaminhada pela escola ou por procura espontânea através de seus pais é necessário  investigar as possiblidades de um diagnóstico. Este , por sua vez, pode ser resultante de  um leque de possibilidades que se estende desde fatores puramente educacionais até desajustes neurológicos passando por possíveis problemas emocionais.  Este manejo exige que todos os profissionais envolvidos- mesmo de especialidades muito distintas- tenham conhecimento de um pouco de tudo que influencia o comportamento, a aprendizagem e o desenvolvimento infanto-juvenis. O psicólogo deve entender um pouco neurologia e neurodesenvolvimento; o pedagogo, entender um bocado de linguagem e fonologia;  o fonoaudiólogo, desvendar  na sua avaliação se existem possibilidades de problemas de comportamento ou de atraso de aquisição de pré-requisitos da estrututração da linguagem do paciente e, por fim,  o neurologista compreender melhor os processos psicopedagógicos.  Intercalar e emaranhar tantos conhecimentos é possível desde que cada um se interesse um pouco mais pela especialidade do outro sem preconceitos, influências ideológicas ou fundamentalismos teóricos. Abrir espaço para que a avaliação do outro contribue com o seu pode levar ao resultado melhor possível.

A multidisciplinaridade é isto: abordar problemas e situações utilizando-se de vários especialistas em constante e contínua comunicação entre eles. No caso da Aprendizagem Escolar, este tipo de manejo traz grandes vantagens pois consegue avaliar os mais diversos aspectos envolvidos e rastrear todas as possibilidades desencadeadoras de baixo rendimento ou de incapacidade para se apropriar adequadamente da leitura e da escrita. Como a aprendizagem depende de processos multifacetários que vão desde aspectos puramente pedagógicos até fatores neurobiológicos, as avaliações devem se cercar da interface entre áreas que servem tanto `a Saúde com `a Educação.

Neste processo, a participação da escola é essencial e deve sempre ser cercada dos maiores detalhes na hora de relatar o que realmente está acontecendo. Com isto, a escola atesta aos pais que está realmente preocupada e envolvida com seu (sua) filho (a) e que fará o que for necessário e possível para ajudar.  A confecção de um relatório escolar é valiosa e deve descrever os aspectos da aprendizagem e do comportamento do aluno para poder encaminhá-lo para a equipe interdisciplinar. Muitas informações são específicas e os pais não sabem relatar de forma segura e correta e a escola, dotada de professores e gestores que dominam conhecimentos técnicos, tem a expertise em informar melhor e de forma mais ampla.

A importância de toda esta ampla estratégia reside em vários argumentos que favorecem a todos: 1) a família vai confiar cada vez mais nas conclusões da avaliação  e ajudará  com relatos  cada vez mais  detalhados;  2)  os profissionais passam a falar a mesma língua e afinando a comunicação entre eles;  3)  a motivação para atualização e estudo frequente aumenta e impulsiona a todos a buscarem as evidências científicas e aprenderem com a experiência consolidada de cada um;  4)  redução progressiva dos preconceitos de outrora e diluição de críticas pois todos passam a ser responsáveis pelo resultado da avaliação e pelas medidas integradas de intervenção; 5) numa área onde os exames de sangue e de imagem tem papel muito pequeno e secundário, a visão clínica e observacional com aplicação de protocolos estruturados toma corpo e protagonismo levando a uma mudança na nossa cultura ainda muito baseada em exames de laboratório;  6) estimula medidas de prevenção de problemas escolares e de aprendizagem por meio de formação de profissionais que sejam treinados a detectar precocemente sinais de risco pré-escolares tanto nas áreas de Saúde quanto  na de Educação;  7) impulsiona políticas públicas inclusivas e que privilegiam métodos e modelos pedagógicos que individualizam e respeitam o nível de desenvolvimento das crianças.

O advento da neuropsicologia nos anos 70, o desenvolvimento das neurociências nos anos 90 e o acesso `a plena informação nas mídias sociais com espraiamento de suas descobertas e constantes atualizações para outras especialidades e profissões afins deram enorme contribuição para a  compreensão de como o cérebro aprende, sente e processa os mais diferentes tipos de informações.  Além disto,  trouxeram novos paradigmas, descrições mais detalhadas das habilidades cognitivas, novos conceitos embasando e  interligando conhecimentos diversos com as funções neurológicas,  testes e avaliações que auxiliam e permitem entender onde a criança vem falhando mais, etc. Estes dados proporcionaram o desenvolvimento de novos conhecimentos para as mais diversas disciplinas, como a psicomotricidade, a psicopedagogia e a fonoaudiologia.  O neuropediatra e o psiquiatra infantil passaram a analisar estas crianças e adolescentes usando ferramentas mais objetivas envolvendo uma maior participação dos pais, professores e outros profissionais os quais ganharam mais peso e influência na tomada de decisões. Nem é preciso acrescentar o que tudo isto representou para as pesquisas científicas e o peso que estas passaram a ter, por sua vez,  na pedagogia e nas políticas de gestão da Educação.

É salutar, portanto, que se tenha em nossos dias uma nova postura. Os profissionais precisam aprofundar seus conhecimentos nestas áreas especialmente aqueles que atendem na linha de frente e no patamar mais básico de ambos os sistemas, como os pediatras, pedagogos e profissionais dos CMEI, psicólogos, médicos clínicos gerais que atendem no PSF ou NASF, enfermeiros de postos de saúde e professores do pré e fundamental I.  Estes profissionais fazem normalmente o primeiro contato com a família e a criança e a identificação precoce de sinais de risco é o passo mais importante para intervir cedo e reduzir chance de vir a ter problemas escolares.  Outrossim, passa-se a estimular meios de divulgação, adoção de leis e recursos na legislação que regulamentem novos serviços de atenção primária e se criam mais formas de sensibilização para determinados assuntos que porventura persistem em ser,  dentro de nossa cultura,  temas-tabus ou  negligenciados, como , por exemplo, o TDAH e os transtornos neuropsiquiátricos em geral.  A difusão da informação baseada em evidências quebra barreiras entre as profissões e permite que as mesmas se inter-relacionem mais em direção ao benefício humano e `a redução de preconceitos e de discriminação. Assim, o objetivo é simples: fazer do difícil algo palatável e,   do repulsivo, algo aceitável e administrável pois  o conhecimento dilui resistências e favorece novas abordagens desprovidas de desconfianças inclusive no meio escolar.

A multidisciplinaridade é,  portanto,  um processo sistematizado num exemplo mais-do-que-perfeito de interface entre a Saúde e a Educação que leva em direção a um constante compartilhamento de avaliações entre as especialidades  a serviço de um mesmo fim : entender porque, a despeito de seu potencial,  uma criança não consegue aprender ou atingir o que se espera dela.